KWANZA SUL: UMA RICA PROVÍNCIA, MAS VÍTIMA DA GOVERNAÇÃO SEM PROJECTO . Por: Nuno Álvaro Dala

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Não pretendo escrever uma crónica de viagem. Apesar de ter já estado em 161 dos 164 municípios de Angola, não costumo escrever crónicas de viagem.
Estive nos últimos 5 dias na Província do Kwanza Sul (para realizar um projecto de investigação científica de enfoque qualitativo).
Apesar de não ter sido a primeira vez a estar na referida província, não consigo deixar de ficar surpreendido e chocado pelo estado verdadeiramente distópico em que se encontra Kwanza Sul (conheço 11 dos seus 12 municípios, sendo excepção Libolo). A província (com 55 660 km²) é maior que a Holanda (que tem 42 508 km²) e é riquíssima em recursos naturais. É também um gigantesco solo fértil, propício ao desenvolvimento da agricultura industrial. Não é à toa que, nos anos 1940, muitos alemães, em fuga da Alemanha nazista, estabeleceram-se na província e construíram fazendas que revolucionaram o processo de produção agro-industrial.
Todavia, é claro que os mais importantes recursos são as pessoas – os autóctones e habitantes de Kwanza Sul. Como sou linguista (também), sempre fico especialmente fascinado pelo mosaico linguístico local, caracterizado por uma variedade de línguas, variantes e dialectos, com realce ao Umbundu, ao Kimbundu e ao chamado Ngoya (uma variante que resultou, dentre outras dinâmicas, da fusão das duas primeiras e da regionalização).
Obviamente, a malha etnográfica e a etnocultural são riquíssimas.
Infelizmente, a qualidade de vida da vasta maioria dos habitantes não deixa apenas a desejar. É revoltante.
Enquanto desenvolvia a 17ª fase da investigação, em Kibala, entrevistei um jovem que, à primeira vista, me parecia ter 13 anos. «Não, doutor, ele tem 18 anos», corrigiram os mais velhos.
«OK, mas tu frequentas a escola?», perguntei eu. «Nunca fui à escola…», respondeu o rapaz, trajado de uma camisa preta e calcões também de cor preta, mas gastos e rasgados. «Ele é órfão desde bebé. Não tem registo e não sabe a data em que nasceu. Nós cuidamos dele desde então», acrescentaram os mais velhos.
Não digo que fiquei estarrecido com o facto de um rapaz de 18 anos não ter registo de nascimento nem frequentar a escola. Mas também não consigo deixar de ficar numa espécie de estado de densa tristeza sempre que me deparo com casos desta natureza.
O caso do Domingos (é este o nome dele) é apenas um no meio de miríades, que reflectem o estado de abandono em que se encontram os cidadãos desta Angola, que faz parte da lista dos 25 países com os maiores recursos naturais do planeta Terra.
O Bairro Chingo, que dá entrada à cidade capital da província (Sumbe) faz o visitante estreante questionar «onde está a cidade?». A verdade é que os bairros degradados cercam Sumbe configurando uma paisagem deprimente. A cidade propriamente dita é uma espécie de resto urbano.
Sumbe simplesmente parece ser uma cidade na qual ocorreu um ciclone.
Estradas desfiguradas, edifícios quase descorados, semáforos parados há muito tempo, enfim, uma tragédia urbana. Nem falo das condições de acessibilidade para cidadãos com limitações físicas. É um pesadelo.
A cidade que é a capital do Kwanza Sul não possui uma biblioteca pública digna do nome. Livrarias, se contadas, ainda nos sobraria a maioria dos dedos das mãos. Salas de cinema, de teatro e mediatecas são uma miragem. A famosa Marginal do Sumbe tem poucos atractivos. Bem, espera-se que as obras de que está a ser alvo venham a aproximá-la da Marginal de Luanda. Mas, considerando o extenso histórico de obras públicas paradas e inacabadas por conta do desvio dos recursos alocados (em milhões de dólares), é cedo para celebrar.
Deve ser notado que o edifício do Secretariado Provincial do MPLA é um dos raros edifícios modernos da cidade, rivalizando até mesmo com o do Governo da Província.
Quanto às sedes dos municípios, essas praticamente pararam no tempo. Cela, Waku Kungo, Gabela, Hebo e Kibala são amostras do estado de subdesenvolvimento urbano que marca as respectivas sedes, cuja estrutura arquitectónica é a mesma deixada pelos portugueses. As sedes são cercadas de bairros precários e caóticos.
Quanto à famosa centralidade, esta é mais uma ilusão do que realidade. Na verdade, devemos questionar se existem mesmo centralidades em Angola.
Voltando ao Sumbe, fiquei hospedado no Hotel Kalunda, que me surpreendeu pela qualidade dos serviços da recepção, dos quartos, do restaurante e da sua esplanada, localizada numa posição que permite ter uma visão panorâmica do Sumbe, ajudando a ter inspiração para escrever algo sobre a experiência de estar numa província que tem tudo para dar certo, mas que continua a ser vitima de governação sem projecto (escrevo este texto na referida esplanada, enquanto desfruto das atenções do solícito pessoal do hotel).
O hotel é quase uma espécie de oásis num cálido deserto urbano do tipo pós-apocalíptico.
Mas Sumbe e, como tal, Kwanza Sul, tem gente que sonha e (quer) faz(er) algo para que a generalização do bem-estar social seja uma realidade, permitindo que o potencial humano local seja desenvolvido para o bem comum. E são exemplos os jovens com quem partilhei experiências no auditório da Escola 14 de Abril. Conhecimentos e experiências em matéria de Direitos Humanos, Construtivismo Ético dos Direitos Humanos, Desenvolvimento Humano, Sociedade Civil, Metodologia de Intervenção Cívica e Activismo com Projecto.
Ora, voltando ao Hotel Kalunda. Gostei de ter estado lá. O único serviço de que não gostei, aliás, de que nem sequer usufruí, é o de internet. O wi-fi simplesmente não funcionou e desconsegui de aceder à internet. Este foi o único aspecto negativo que registei ao longo dos dias em que estive hospedado no hotel. Não vou, porém, comentar mais sobre o problema, porque, salvo equívoco, numa cidade onde as ruas e estradas parecem ter sido destruídas por um terramoto e onde abunda poeira em quantidades industriais, chega a ser uma quase veleidade exigir boa internet…Ah, e acabei caindo na piscina do hotel. Eu estava a caminhar – totalmente absorto na leitura de umas referências – e, quando dei por mim, estava literalmente na água e incrédulo, deixando o pessoal preocupado, especialmente o proprietário do hotel. Felizmente, não tive ferimentos de espécie nenhuma.
Se do Hotel Kalunda saio com boas referências (excepto a internet), com a vontade de regressar, bem como com o registo da minha aparatosa e risível queda na piscina, da província do Kwanza Sul, em geral, saio com uma memória do estado de tragédia económica e social que expõe eloquentemente as consequências da governação sem projecto de que a província tem sido alvo desde 1975.

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